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Sefaz-SP: a descaracterização das operações de venda entre familiares

Elas no JOTA

Por: Monica Bity e ?Cleíse N. Martins-Costa

Divergência jurisprudencial sobre ITCMD reflete necessidade de abordagem mais equilibrada por parte do fisco

Recentemente os contribuintes do estado de São Paulo vêm recebendo um aviso em razão da Operação Loki, implementada pela Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado (Sefaz-SP): haverá incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) em supostas doações de títulos representativos do capital social de empresas, tanto operacionais como holdings, simuladas em operações de compra e venda.

De acordo com a Sefaz-SP, os contribuintes que receberam o referido aviso podem ter realizado um planejamento sucessório considerado irregular, onde pode ter ocorrido simulação de venda de participação societária cujo objetivo era a transmissão de herança, sem o pagamento do tributo incidente ou mesmo quando a venda ocorreu por um valor menor. Para averiguar indícios da realização dessas operações suspeitas, a Sefaz-SP cruzou dados da JUCESP (Junta Comercial de São Paulo) com dados da Receita Estadual e constatou a existência de vínculo familiar entre compradores e vendedores das participações societárias, por valores baixos ou inexistentes.

O caráter jurídico do aviso da Sefaz-SP: ausência de previsão legal

Os avisos emitidos apenas informam ao contribuinte que, de acordo com o cruzamento de base de dados, foram identificados indícios de ilegitimidade na transmissão de participação societária, que pode ter sido, em verdade, uma doação sem o devido pagamento do ITCMD.

Este tipo de aviso não possui previsão legal no ordenamento jurídico, sendo apenas prática para incentivar a conformidade voluntária que permita a autorregularização antes de constituição do eventual crédito tributário.

A Sefaz-SP sugere que os contribuintes revisem suas operações e, se assim entenderem, realizem a autorregularização. Caso contrário, o contribuinte poderá ser notificado acerca do início do procedimento de auditoria fiscal, e para a comprovar a onerosidade da operação, a origem do dinheiro e o pagamento do preço de venda ajustado. Nesta auditoria, a fiscalização poderá concluir pela ocorrência de simulação, ensejando ação fiscal que poderá resultar em autuações para cobrança do imposto devido com acréscimo de multas punitivas e juros.

Jurisprudência alegada pela Sefaz-SP

No aviso enviado pela Sefaz-SP a iniciativa é fundamentada em algumas recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A primeira, o AREsp 1989616 – SP (2021/0305208-5), trata de agravo interposto pelo contribuinte contra a decisão que inadmitiu o recurso especial. Neste recurso especial, o recorrente, além de elementos processuais, alegou violação ao arts. 110[1] e 114[2] do Código Tributário Nacional (CTN), sustentando que a autonomia da vontade das partes, ao atribuir ao bem ou direito o valor desejado, deve ser respeitada, afastando a incidência do ITCMD.

Entretanto, o STJ não conheceu o Recurso Especial com base na Súmula 7, o que impede o reexame de provas e fatos. Assim, não houve uma revisão dos argumentos materiais apresentados pelo contribuinte e a decisão do tribunal de origem permaneceu válida.

Importante destacar que este caso se refere, na origem, a mandado de segurança, impetrado pelo contribuinte cujo objetivo era demonstrar a ausência de fato gerador do ITCMD.

A sentença denegou a ordem, o que ensejou a interposição de apelação.  que, por sua vez, teve como fundamento os artigos 28[3] e 29[4] da Lei 10.705/2000 que determinam que o fisco estadual pode investigar a existência de hipóteses de incidência do ITCMD nas situações descritas em lei, tais como inventários, arrolamentos e doações, que são consideradas operações de caráter não oneroso. Por fim, argumentou que não poderia haver liberdade de transmutar uma operação onerosa (compra e venda/cessão onerosa) em uma gratuita (doação), porquanto isso representaria ofensa direta às disposições do art. 110 do CTN.

Entretanto, o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) negou o provimento ao recurso de apelação, determinou que operação realizada, embora formalmente caracterizada como onerosa, foi considerada uma simulação, com a intenção de mascarar a doação, configurando-se, assim, a incidência do ITCMD.

O TJSP baseou sua decisão no fato de que as quotas da empresa, cujo patrimônio líquido era relativamente alto, foram vendidas pelo valor irrisório de R$ 1 cada.

Além disso, o TJSP ressaltou a legitimidade do procedimento administrativo de arbitramento da base de cálculo, conforme o artigo 11[5] da Lei Estadual 10.705/2000, que assegura ao fisco o direito de investigar e arbitrar a base de cálculo do tributo quando houver discordância quanto ao valor declarado pelo contribuinte. Dessa forma, a decisão do TJSP reafirmou a validade do lançamento fiscal efetuado pela Sefaz-SP, concluindo que a operação realizada pelos impetrantes constituía, de fato, uma doação disfarçada e sujeita à incidência do ITCMD.

A segunda decisão que fundamenta a posição da Sefaz-SP foi exarada no AREsp 2182407 – SP (2022/0241216-7), que tratou de situação similar, onde o contribuinte alienou quotas sociais por valor que o fisco estadual considerou ínfimo. A Sefaz-SP arbitrou um valor superior, com base no patrimônio líquido da empresa, considerando o excesso como doação.

Após ter tido seu pleito em primeira instância negado, o requerente apelou contra a sentença, ocasião em que o TJSP, em segunda instância, concluiu que, embora a venda fosse formalmente onerosa, a verdadeira intenção das partes era a prática de uma doação disfarçada, validando a cobrança do imposto.

Este acórdão do TJSP teve como fundamento os artigos 110 e 114 do CTN, além do artigo 11 da Lei Estadual 10.705/2000, segundo os quais o fisco está autorizado a arbitrar a base de cálculo do ITCMD quando não concorda com o valor atribuído pelo contribuinte.

Existência de divergência jurisprudencial sobre o tema

Apesar da jurisprudência levantada pela Sefaz-SP, importante ressaltar que o entendimento sobre o tema não está pacificado e existem outras decisões do TJSP em sentido contrário, segundo as quais há prevalência da autonomia da vontade das partes na estipulação de valores com a conclusão da não incidência de ITCMD sobre as operações de compra e venda de quotas sociais.

Recentemente, a 1ª e a 11ª Câmaras de Direito Público decidiram, em casos semelhantes, que a venda de participações societárias por valor inferior ao de mercado não configura doação, enfatizando a liberdade contratual para estipular valores, sem a incidência do tributo ITCMD, que só se aplicaria estritamente às hipóteses de herança e doação.

Em maio de 2024 , o TJSP[6] analisou a aquisição de mais de 60 mil quotas de uma empresa administradora de imóveis pelo valor de R$ 1 cada. Para o fisco estadual, o valor correto de cada quota deveria ser o de R$ 3,50, o que elevaria o valor do contrato para R$ 217,5 mil – configurando “doação” a diferença entre os dois valores.

No entanto, os desembargadores não viram ilegalidade e anularam o auto de infração. Os documentos apresentados, especialmente o instrumento particular de cessão de quotas e a minuta de alteração contratual, afastaram a hipótese de doação das quotas, não configurando, assim, o fato gerador do ITCMD. O relator, desembargador Vicente de Abreu Amadei, enfatizou que “não há previsão legal a determinar que o valor patrimonial da quota a ser utilizado como base de cálculo do ITCMD seja o valor patrimonial real”.

Em outro caso, o TJSP[7] afastou a cobrança de ITCMD sobre a diferença de valor de venda das quotas da pessoa jurídica proprietária de imóveis rurais por um valor abaixo do mercado. O tribunal entendeu não ser uma doação, já que não houve gratuidade na transferência. A decisão reafirmou a posição de que a venda por valor abaixo do mercado não necessariamente configura doação, reforçando a necessidade de análise individual de cada caso para determinar a presença de gratuidade na transferência.

Além disso, em ambos os acórdãos, os desembargadores ressaltaram a importância da liberdade contratual e a ausência de prova da Sefaz-SP de que as transações tinham a intenção de dissimular uma doação. Essas decisões reforçam a perspectiva de que a simples discrepância entre o valor de venda e o valor patrimonial não constitui prova suficiente para caracterizar uma doação e, consequentemente, não justifica a cobrança do ITCMD.

Conclusão

A atuação da Sefaz-SP na Operação Loki revela que contratos de cessão de participação societária entre familiares tornaram-se objeto da fiscalização com certa presunção de simulação se ausentes certos elementos como preço e valor de mercado.

Não obstante os pontos levantados pelo STJ e TJSP acima mencionados, entendemos que a Sefaz-SP baseia suas ações em uma interpretação que pode ser vista como extrapolação de suas competências, ao invocar o art. 149, VII,[8] do CTN para justificar lançamentos de ofício em casos em que a alegada simulação não está claramente caracterizada.

Nesse caso, a autoridade fiscal estaria desconsiderando a necessidade de comprovação inequívoca de dolo, fraude ou simulação, o que vai contra o princípio da tipicidade cerrada do direito tributário. Neste sentido, há margem para arguir que a abordagem da Sefaz-SP na Operação Loki não somente traz incertezas sobre a validade dos negócios jurídicos realizados sob preceitos legítimos, mas também pode desencorajar operações legítimas e o planejamento sucessório.

Nesse sentido, é importante ressaltar que o mero fato de uma transação envolver valores que não encontram parâmetro no patrimônio líquido entre familiares não deve, automaticamente, levar à conclusão de simulação de doação. A realidade econômica e a intenção das partes devem ser os critérios determinantes para a análise da incidência do ITCMD. Assim, é crucial que cada caso seja estudado detalhadamente, considerando a substância econômica do ato praticado e não apenas a sua forma.

Ademais, a divergência jurisprudencial existente, com decisões que favorecem os contribuintes ao reconhecer a legitimidade das vendas de participações societárias por valor inferior ao mercado, reflete a necessidade de uma abordagem mais equilibrada e ponderada por parte do fisco.

Não obstante, por preciosismo, é fundamental que o advogado engajado no planejamento sucessório de seus clientes utilize fundamentos e princípios atualizados, em linha com os padrões internacionais e as decisões majoritárias da fiscalização e dos tribunais, para aconselhar seus clientes, evitando que, no futuro, as operações realizadas possam ser objeto de questionamento por parte da fiscalização, ensejando sua desconsideração, caracterização como simulação e a potencial autuação fiscal.


[1] Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

[2] Art. 114. Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.

[3] Artigo 28. Compete à Procuradoria Geral do Estado intervir e ser ouvida nos inventários, arrolamentos e outros feitos processados neste Estado, no interesse da arrecadação do imposto de que trata esta lei

[4] Artigo 29. Em harmonia com o disposto no artigo anterior, cabe aos Agentes Fiscais de Rendas investigar a existência de heranças e doações sujeitas ao imposto, podendo, para esse fim, solicitar o exame de livros e informações dos cartórios e demais repartições.

[5] Artigo 11. Não concordando a Fazenda com valor declarado ou atribuído a bem ou direito do espólio, instaurar-se-á o respectivo procedimento administrativo de arbitramento da base de cálculo, para fins de lançamento e notificação do contribuinte, que poderá impugná-lo.

  • 1º – Fica assegurado ao interessado o direito de requerer avaliação judicial, incumbindo-lhe, neste caso, o pagamento das despesas.
  • 2º –As disposições deste artigo aplicam-se, no que couber, às demais partilhas ou divisões de bens sujeitas a processo judicial das quais resultem atos tributáveis

[6] TJSP. 1ª Câmara de Direito Público. Apelação Cível nº 1001299-20.2023.8.26.0024. Apelante: Fazenda Pública do Estado de São Paulo. Apelado: João Antonio Guedes da Silva. Relator: Vicente de Abreu Amadei. Julgado em: 13 de maio de 2024.

[7] TJSP. 11ª Câmara de Direito Público. Apelação Cível nº 1000353-04.2023.8.26.0168. Apelantes e Reciprocamente Apelados: Juraci Altino Sociedade Individual de Advocacia e Estado de São Paulo. Apelado: Francisco Troncon Neto. Relator: Márcio Kammer de Lima. Julgado em: 26 de março de 2024.

[8] Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:

VII – quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;

Monica Bity – Sócia fundadora do escritório Mello Bity, Guetta Advogados, atuante na área de Direito Societário, Empresarial ,Tributário e Weath Planning. Membro da ABDF – Associação Brasileira de Direito Financeiro, da IFA – International Fiscal Association e é membro (Full) do STEP – The Society of Trust and Estate Practitioners. Reconhecida pelo Chambers High Net Worth – HNW 2020 (Chambers & Partners).
Cleíse N. Martins-Costa – Advogada, sócia do escritório MARTINS COSTA & SIMON ADVOGADOS, é professora de Direito Empresarial, presidente da comissão de falência e recuperação judicial da OAB/DF e possui atuação voltada para causas de direito empresarial, insolvência, litígios complexos e estruturação societária, atuando sobretudo no mercado de saúde suplementar